BRINCAR É MESMO SÓ COISA DE CRIANÇA?

O homem só é completo quando brinca. A frase surpreende porque o mundo atávico do adulto não permite reviver o gozo e o prazer da brincadeira, o que confina o prazer do jogo, da brincadeira quase que exclusivamente ao mundo infantil. Como forma de desenvolvimento da personalidade, o adulto tem pouco a extrair das brincadeiras sem sentido, mas para a criança. Esse é o local da exteriorização, da metaforização, da representação de seus conteúdos internos. Brincar, para este caso, é uma terapia por excelência. Independente do contexto, do adulto ou infantil, através do brincar também é possível se expressar, ser curado, ter um crescimento facilitado, tornar-se  saudável.

O jogo, a brincadeira representam para a criança, o papel que o trabalho representa para o adulto. Trabalhar é um dos meios de satisfação do adulto. É no trabalho que o adulto obtém e firma sua individualidade. Para a criança, no entanto, a brincadeira é a forma de obter prazer. É através da brincadeira que a criança pode mostrar como ela é de verdade, de mostrar como é seu mundo, de como enfrentar e absorver as coisas do mundo externo, sejam perdas, ganhas, mortes, nascimentos. No mundo dos adultos, é preciso esquecer da morte para levar a sério os deveres. Esquecidos da morte, a bolha de sabão vira esfera de aço. Inconscientes da morte, os adultos aceitam como naturais as cargas de repressão, de sofrimento e de frustração que a realidade social impõe.

Assim, o trabalho da brincadeira, em especial para a criança, assume outros significados. O primeiro é o de constituir o sujeito, no sentido ontológico, para uma preparação da autorrealização. Outro é para a (re)construção de outra realidade psíquica. Por fim, o brincar reside no fato de facilitar as trocas dos sistemas inconsciente/pré–consciente-consciente, para que se produzam significações pelas articulações de seus significantes. É a isto que se deve estar atento, qual significação real do brincar?

Para Freud, a brincadeira continha um sentido simbólico entendido como uma repetição de algum fato marcante, a possibilidade da entrada da linguagem, a percepção das dicotomias: presenças/ausência, negativo/positivo, bom/mal, ser ou não ser. Suportar o desprazer, perceber a ausência da mãe, adiar a satisfação, bem como outras faltas necessárias à constituição do sujeito.

Quando compartilha seu brincar, a criança tenta transferir sua experiência interna para uma cena onde os companheiros podem funcionar como coadjuvantes de outra fantasmática que se tenta expressar. Embora não se perceba, a criança não brinca apenas pelo prazer, mas tenta repetir cenas dolorosas, a fim de melhor elaborá-las, daí poder dizer que a compulsão à repetição e à satisfação instintual sejam relacionadas, segundo Freud. Repetir significa, inclusive para o mundo adulto, uma possibilidade de reviver e reencenar experiências a fim de obter a satisfação que não foi obtida originalmente.

A criança não apenas se expressa através da brincadeira, que se constitui com uma língua própria, mas é através dela que responde a uma interpretação. Aí reside um modelo terapêutica para as crianças. Pode-se ler a subjetividade da criança, segundo Brauer (2000), a partir da brincadeira. Ao passar a barreira de entrada na brincadeira, pais e terapeutas podem criar uma relação de diádica que permite uma adequada interpretação de via de mão dupla. A criança traz elementos e o adulto devolve outros conteúdos, como num espaço para a metaforização.

O jogo, a brincadeira se constitui como um mundo à parte que não tem mais lugar no mundo dos adultos; é outro universo. Surge, na verdade, como um espaço para reviver o reprimido, para expressar o inconsciente, para reviver suas primeiras relações de objeto. Suas interpretações não devem estar baseadas apenas no conteúdo manifesto, nem mesmo deve-se propor generalizações, como códigos pré-estabelecidos de interpretações dos jogos. Sua riqueza semântica, é preciso advertir, impede uma descrição precisa das situações e sentimentos. É preciso, para compreender o brincar da criança,  situar a vivência, os discursos, os sintomas numa relação dinâmica do mundo que se cerca sob a qual não se considera apenas de causalidade estática e apriorística. É preciso, na verdade, transportar-se para um outro universo.

O brincar, segundo Melanie Klein, também é parte da constituição do sujeito, a partir da sua relação objetal com a mãe, resultantes das primeiras experiências de amamentação do bebê. A introjeção e a projeção da relação de amor e de ódio daí advindas seriam formadoras de um superego (constituição das regras sociais) precoce. As fantasias das crianças, seus desejos e vivências através dos jogos e brinquedos assumem importância tal que, para a autora, as crianças que não conseguem fantasiar e simbolizar na brincadeira poderiam estar perturbadas. Desse modo, brincar é preciso, e traz alívio e novos elementos para a continuidade do desenvolvimento da criança.

Para Donald Winnicott, outro psicanalista, não é necessário que as interpretações sejam imediatas ou pontuadas nas próprias brincadeiras. É preciso deixar a surpresa para si e sobre si chegar, como num insight, e não apenas no momento de uma arguta interpretação. A interpretação fora de um amadurecimento do material pode levar a uma submissão porque, segundo o autor, somente o paciente tem o direito de atestar sobre o significado de seu brincar. É preciso brincar mutuamente no mesmo pseudomundo para que desse modo a interpretação ocorra. E não somente a interpretação, mas a própria possibilidade de reviver e reinterpretar o conteúdo. O momento brilhante dessa relação diádica é aquele em que há espaço para se surpreender.

Visto também como expressão de subjetividade e sob a compreensão de um setting, não apenas as crianças devem brincar, mas os adultos também. Nesse contexto, há que se estar livre de preconceitos, de repúdios, de vergonha. É preciso desligar-se da realidade e viajar para esse pseudomundo, fruto ilusório da imaginação infantil. As crianças brincam com mais facilidade quando a outra pode e está livre para ser brincalhona. Para os adultos a diferença estar no querer apenas, afinal, o repertório pueril já está lá.

Para o adulto, não é possível estar preso a uma intenção interpretativa do brincar, mas atento a características intrínsecas da atividade lúdica. A primeira delas é que no jogo, ou na brincadeira, está envolvido uma incerteza que resulta na  imprevisibilidade, na indeterminação de seus resultados, sobretudo os ligados ao prazer da atividade. Outro ponto a se observar é a duplicidade do real/irreal, isto é, há sempre um conteúdo irreal (que não se traduz necessariamente em fantasias) que se traz à brincadeira. Isso nos remete a uma interpretação mais acurada e precisa que simplesmente se se considerasse a irrealidade ou o distanciamento da realidade do jogo. A terceira característica refere-se ao processo de ilusão que funda e mantém o jogo. É preciso estar aberto para entrar no espírito de ilusão do jogo. Isso aponta que, a realidade do jogo não está expressa nos seus traços materiais ou nos seus elementos objetivos, mas apenas no jogador que é capaz de garantir a intenção e todos os significantes da brincadeira.

Assim, o brincar não tem muitas certezas sobre antecedentes e ou consequentes. Há exemplos claros que não se prestam à simples razão teórica. A teoria aponta inequivocamente para como o jogo, ou a brincadeira como porta para expressão de tendências subjetivas, de fugas, de evasões à realidade, de liberação de desejos intensos.

Importa, contudo, ressaltar que também é muito delicado e perigoso querer encontrar motivos escondidos onde frequentemente eles são claros e conscientes. Daí a necessidade de um trabalho profissional para obter da relação diádica a mais arguta interpretação. Afinal, às vezes, desenhar com um lápis preto uma determinada pessoa pode simplesmente significar que aquele lápis é o único que tenha uma ponta feita e está mais disponível para criança e não que seu ego está em conflito com seu superego precoce partido de uma posição depressiva, como diriam alguns afoitos psicanalistas em formação.

Brincar essencialmente satisfaz. É preciso brincar. Novamente: o homem só é completo quando brinca. Brincar não é apenas uma atitude analítica, como a associação livre é para o adulto, mas uma atividade constituinte de sujeito, uma expressão de linguagem individual, sem a qual não se poderá atingir o mundo real do adulto. O jogo também constitui o homem, seja ele ainda criança, ou seja, aquele que cresceu e perdeu esse espaço privilegiado de prazer e de amar.

Vamos brincar?