A Modernização da família

Será que o núcleo familiar sempre manteve a estrutura ao longo da história? Será que a configuração familiar influenciava o tipo de sociedade em que vivíamos? De acordo com Hareven (1994), a trajetória da vida é essencialmente a sincronização do tempo individual, do tempo familiar e do tempo histórico.

Considerando este paradigma, que enfatiza a interação entre as transformações pessoais e as mudanças históricas, a adaptação das transições individuais à evolução da família e o impacto das experiências de vida moldadas pelas circunstâncias históricas, observa-se que a transformação do núcleo familiar ocorre em diversos níveis. À medida que o indivíduo evolui, a família se adapta, a sociedade se modifica e, consequentemente, a história se transforma.

Para Aries, a transformação da família, da era medieval até a era moderna, ocorreu principalmente devido às mudanças no tratamento das crianças. Essas novas realidades surgiram quando as crianças passaram a ser criadas em seu próprio lar, ao invés de em ambientes familiares alternativos. Isso permitiu uma melhor expressão de afeto e amor, pois as crianças agora estavam permanentemente em casa. O desenvolvimento dos sentimentos familiares progrediu em paralelo com o avanço da vida privada e da intimidade doméstica.

Com toda a família reunida e a modernização do mundo, tornou-se necessário repensar todas as suas estruturas sociais, incluindo sociabilidade, educação, sentimentos e sustento econômico. Esse período marcou o início de uma nova configuração para a família, conduzindo-a a uma maior individualidade e tornando-a a célula fundamental da sociedade. Foi também nesse momento que os papéis familiares de pai, mãe, filhos e filhas começaram a ser delineados, cada um com funções específicas, resultantes de mudanças internas. Assim, a partir dos séculos XVII e XVIII, a família acompanhou as rápidas transformações do mundo.

A modernização enfatizou a maior individualização, intimidade e expressão de afeto, mas também resultou em maior separação entre seus membros e isolamento dos mais velhos. Segundo Jablonski (1991), agora é necessário construir “muros”, transformando as famílias em ilhas. Essa separação do meio social implica em uma relação social bastante diferente da vivida em tempos bíblicos. No entanto, isso não significa que a família moderna se volte apenas para si, pois somos seres sociais que necessitam de uma comunidade para se relacionar, crescer e viver.

Jablonski (1991) argumenta que a modernidade transformou a função histórica da família, que antes era garantir a sobrevivência econômica, incorporando agora muitas outras funções. As relações afetuosas passaram a ter um papel fundamental no ambiente familiar, servindo como um refúgio para momentos de incerteza. “O lar tornou-se o lugar da expressão emocional. Nos outros lugares, para o resto da vida, emoções não têm lugar” (Mowrer, 1932, citado em Jablonski, 1991). Constroem-se muros e fortificações no lar contra outras emoções, cujas chaves se perdem no processo.

Essas novas funções e relações podem ser explicadas pela instituição do casamento por amor, o isolamento da família, o novo papel da criança e da mulher no contexto familiar e social, e pelo estado do mundo contemporâneo.

A evolução do conceito de família, da era medieval à moderna, revela transformações profundas impulsionadas pelo tratamento das crianças e pela reconfiguração dos papéis familiares. A modernização trouxe consigo a necessidade de repensar as estruturas sociais e resultou em uma maior individualidade, ao mesmo tempo em que promoveu a intimidade e o isolamento dentro do núcleo familiar. A ênfase na expressão emocional no lar, embora tenha suas vantagens, também contribuiu para a criação de barreiras emocionais que isolam os membros da família da sociedade mais ampla.

Essa evolução indica um cenário em que a modernização da família pode levar a uma fragmentação emocional e a uma incapacidade de convívio além das fronteiras familiares, resultando na perda de comunicação e deterioração das funções sociais. Esse isolamento emocional pode ser visto no sentimento de solidão e melancolia que aflige milhares de pessoas nas grandes cidades, onde, apesar de estarem cercadas por milhões, muitas não encontram alívio para sua angústia.

A reflexão inevitável é: como podemos reconciliar a necessidade de individualidade e intimidade familiar com a manutenção de conexões sociais saudáveis e significativas? A modernização da família nos desafia a encontrar um equilíbrio entre o aconchego do lar e a abertura ao mundo exterior. É crucial ponderar se estamos caminhando para uma esquizofrenização das emoções ou se podemos, conscientemente, construir um futuro onde a família e a sociedade coexistam harmoniosamente.

Autor

  • Originário de Brasília, desde cedo me inclinei para a curiosidade científica e analítica da psique humana. Ao concluir psicologia, tenho me vislumbrado com as profundezas da psique humana por meio da psicanálise. Minha vivência na Europa permitiu expandir teorias e visões de mundo por meio de profundos contatos profissionais e culturais. O retorno ao Brasil teve grande impacto ao expandir minha atuação profissional na clínica psicológica e na educação superior. Minha trajetória pessoal e profissional é marcada pela busca constante de compreensão das complexidades da mente humana e das interações sociais, sempre objetivando a promoção do bem-estar e a expansão dos limites da narrativa pessoal, social e até mesmo corporativa.

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