VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR: O SILÊNCIO QUE GRITA.
Você já se perguntou quantas famílias, atrás das portas fechadas de suas casas, vivem realidades de medo e coerção? A violência intrafamiliar, muitas vezes oculta e silenciosa, perpassa os lares de formas variadas e em diferentes graus, criando um ambiente onde o temor e a repressão imperam. Quais são os segredos que sustentam essas relações? E como a intervenção terapêutica pode quebrar esse ciclo de opressão?
Esses segredos não apenas encobrem os atos violentos, mas também enterram medos e angústias não reveladas, relações conjugais e parentais desequilibradas, e até o silêncio nas sessões terapêuticas. Quando o terapeuta não consegue desvendar ou interromper esse contexto opressor, a capacidade da família de agir e promover mudanças pode ser severamente comprometida. Como podemos, então, trazer luz a essas sombras e ajudar essas famílias a encontrar um caminho para a liberdade e a cura?
Mas os segredos não ocultam apenas a identidade do responsável ou a dimensão dos atos violentos; eles também escondem seus efeitos devastadores. Após um episódio de violência, a relação conjugal perde a base de confiança mútua. A resposta a essa situação muitas vezes se torna ineficaz, resultando em um sistema familiar rígido e estagnado, sustentado por forças opressoras. A violência se torna um marco na vida dos envolvidos, criando uma divisão clara entre o antes e o depois da terapia. Seu impacto pode ainda se estender a outras gerações, perpetuando um ciclo de sofrimento.
Embora seja tão difundida, a violência intrafamiliar permanece como ponto obscuro na sociedade e mesmo em uma intervenção terapêutica. É preciso analisar-se a construção, desde os momentos mais primitivos, da organização social e como ela se mantém. A família sendo um sistema entre sistemas, não pode ser compreendida fora de seu contexto – investigando-se as questões, sejam elas positivas e negativas que permeam sua dinâmica. Assim, a investigação da influência da organização social é um ponto importante para compreender-se como a realidade do espancamento é instituída, quais são os mecanismos para sua manutenção e, inclusive, como o segredo é determinado.
DINÂMICA DO PODER E DO SILÊNCIO
Em primeiro lugar é preciso dizer que a reincidência ou sequência de atos violentos fortalece uma hierarquia rígida de poder e controle, alimentada pelo silêncio e pela confirmação de uma ameaça constante, baseada na noção de o homem é o protetor, o que sustenta e, consequentemente, detém deliberadamente o poder. Assim, muitas vezes o que se verifica é um contexto de silenciamento, onde tanto espancadores e vítimas, por diferentes motivos, racionalizam, minimizam, justificam e atribuem culpa aos outros (Imber-Black, 1994). Não há a crença que, após o comprometimento de uma união e formação de um lar, o agressor seja capaz de um ato violento ou de sua reincidência. A vítima, inclusive, deseja perdoar e esquecer, além de fornecer subsídios para que o agressor consiga ajuda, sem se envolver diretamente na situação.
Inserido em um contexto em que ainda predomina uma hierarquia rígida e patriarcal, a família é colocada em uma posição em que é requisitada uma determinação de papéis não modificáveis e uma manutenção do status quo referente aqueles que formalizam o poder sobre os diferentes subsistemas (em nossa sociedade, o homem, o pai, o marido).
Kaufman, no livro “Os segredos da família e da terapia familiar” ressalta a questão da violência particularmente na ação abusiva dos homens e na vitimização das mulheres, visto que esta configuração constitui grande parte dos casos de agressão física. O autor coloca que os segredos de agressão à mulher são determinados de diferentes formas, constituindo-se como uma combinação de violência, jogos mentais, ameaças, críticas e pelo status que o homem apresenta por deter o controle econômico e social. Com a exaltação da supremacia masculina, onde praticamente o sexismo é a norma, institui-se uma rede de controles encobertos e manifestos, não só no âmbito familiar, mas também institucional e social que permite a perpetuação da violência nos moldes da hierarquia de poder e dos segredos.
A violência física constitui, inclusive, um instrumento para manter o poder sobre o outro, de tal forma a desmistificar uma certa insegurança que o homem apresenta frente a evolução dos movimentos feministas. Desta forma, a violência é concebida também para consolidar a hegemonia e o poder do sexo masculino. Torna-se uma prática que é, pois, aprendida (as regras e valores sociais machistas estabelecidas multigeracionalmente) e, até certo ponto, aceitável. Mas, é claro, que a mulher ou os filhos podem ser também agentes agressores, utilizando o contexto, de igual modo, para manter seu poder sobre o outro. Aliás, as sociedades machistas ajudam a impedir que o homem denuncie alguma agressão imposta por uma mulher, pois está em jogo a sua “honra masculina”. Denunciar um ato violento, sendo o agressor uma mulher, implica, num contexto machista, a humilhação, a fraqueza do homem e desestruturação de seu status como o “sexo forte”.
SILÊNCIO COMO SAÍDA
A manutenção dessa situação rígida de poder se revela como uma viga de sustentação para a negação e a minimização do comportamento abusivo. Esses jogos psicológicos, onde a minimização e a negação são ativamente mantidas tanto pelo agressor quanto pelas vítimas, perpetuam o ciclo de violência. Esse contexto reforça a necessidade de intervenções terapêuticas que desmantelem essas dinâmicas, promovendo a quebra do silêncio e a revelação dos segredos, essenciais para a recuperação da confiança e o restabelecimento de relações saudáveis. Somente assim é possível interromper a perpetuação da violência e promover um ambiente familiar seguro e acolhedor.
A vítima com frequência se impõe um grande dilema: se enfrentar a situação e decidir pela revelação, poderá sofrer ainda mais a ira e a punição, ou o abandono; mas se mantiver o segredo, trairá a si própria, sua constituição como pessoa, sua integridade. Não será somente o agressor, mas ela também será o agente de sua própria destruição.
Em muitos casos, quando a própria intervenção terapêutica acoberta de certa forma a situação, deixando de perguntar as questões certas no contexto correto e às pessoas apropriadas, a culpa pode recair sobre a vítima. No sistema maior, a sociedade, com suas visões rigidamente hierarquizadas e patriarcais, também favorece a noção de que a culpa reside na vítima se esta é mulher, pois esta não saberia cuidar dos filhos ou não sofreria o estresse que o homem sente no trabalho, etc.
Neste sentido, verifica-se que os segredos e a violência em si não só apontam, mas definem uma hierarquia nos relacionamentos. Assim, as relações de poder podem ser vistas pelo fato de os segredos de violência serem mantidos e instituídos freqüentemente pelas pessoas mais poderosas física e socialmente (geralmente os homens), que utilizam de intimidação e que invocam o direito a privacidade para coagir as pessoas sob seu jugo e estabelecer continuamente a situação.
A RELAÇÃO COM AS CRIANÇAS
Quando se trata das crianças, muitas vezes suas alegações não recebem a devida credibilidade, sendo desconsideradas como meras fantasias infantis ou revoltas contra os pais. Nesse contexto, o poder é frequentemente estendido à mulher, e os pais estabelecem relações de autoridade com fronteiras extremamente rígidas, criando um “não-acesso” mútuo entre o subsistema dos filhos e o dos pais. Em muitos casos, é preciso chegar ao ponto de violência extrema – com marcas físicas inegáveis – para que as alegações das crianças sejam levadas a sério e reconhecidas como verdadeiras.
Essa não escuta pode ter como base uma situação histórica. Isso porque, historicamente a infância não era vista como uma fase específica da vida, e as crianças não eram consideradas sujeitos de direitos. Mesmo juridicamente, a infância é muitas vezes concebida como uma fase de incapacidade, tutela e menoridade, associada a obrigações de obediência e submissão. A violência manifesta, assim, intermediado pelo adulto, um processo de apropriação e dominação. Isso representa um uso/abuso de poder que evidencia uma desestruturação da autoridade legitimada pelo direito, pelo diálogo e por uma dinâmica de ensino e aprendizagem mútua.
As crianças, vítimas mais vulneráveis da violência intrafamiliar, sofrem não apenas fisicamente, mas também emocionalmente e psicologicamente. A falta de credibilidade dada às suas vozes pode perpetuar ciclos de abuso e silêncio, dificultando a intervenção e a proteção adequada. Portanto, é essencial que a sociedade reconheça e valorize as alegações das crianças, proporcionando-lhes um ambiente seguro e acolhedor onde possam crescer e se desenvolver plenamente, livres do medo e da violência.
O papel da privacidade e do segredo
Em uma outra interface, o segredo e o silêncio podem servir como estratégia à sobrevivência e como um meio para preservar as integridades físicas dos membros da família, bem como para definir a si mesmos. As diferentes formas com que a relação entre violência e segredos se apresenta refletem a necessidade premente de sua investigação em referência aos contextos sociais mais amplos e aos discursos e conjuntos de significados sociais estabelecidos.
Outro aspecto relevante, e que quase sempre está presente, reside no fato de os segredos, num contexto de violência doméstica, se vincularem a vergonha, estigma, humilhação e medo da dissolução do sistema. A vergonha institui um senso de ser incompleto, insuficiente e carente. A imobilização estabelecida pelo contexto se estende à imobilização do self que não permite a desvinculação imediata do modus vivendi, por mais que seja abusivo e agressivo. A dor não expressa pela vergonha, pelo medo de abandono do lar ou temor pela reincidência do comportamento violento podem desencadear uma noção de fracasso como pessoa, mãe e esposa, filho, etc. vinculada à desvalorização do poder e consequente culpa. No aspecto conjugal, implica uma falha em atuar as expectativas formuladas durante todo o processo de decisão de união. Na relação pais-filhos, revela-se como frustrador dos investimentos e desejos investidos sobre a geração seguinte.
A violência pode deixar de estar associada ao crime escondido para estabelecer-se como um comportamento privado, que diz respeito somente ao núcleo familiar. O segredo seria o encobrimento intencional e a privacidade refere-se à noção de estar protegida do envolvimento indesejado de um outro, que não faz parte da família; está relacionada a esfera do particular. Enquanto os segredos frequentemente estão associadas ao medo e vergonha, a privacidade implica “em uma certa zona de conforto”, constituindo-se como uma manobra defensiva em uma sociedade que rejeita, negligência e nega os comportamentos desviantes em relação as ideologias e aos valores exaltados.
Este mascaramento implica, muitas vezes, uma atitude de desvinculação do terapeuta que quer proteger a privacidade de seus clientes e oferecer uma atmosfera de confiabilidade, mas que ao mesmo tempo, acaba por contribuir na manutenção de um status quo nocivo e cada vez mais secreto e impermeável
terapia como aliada ou obstáculo
Por último, torna-se necessário discutir a posição que a terapia ocupa em casos envolvendo a violência doméstica. O caráter muitas vezes excludente e negligenciante da terapia revela-se quando se estabelece um acordo em manter confidenciais os crimes, acobertando a situação. Com isto, a terapia neste contexto muitas vezes não é aconselhável como primeiro caminho no processo de reconstrução do sistema familiar. Os terapeutas familiares, inclusive, podem funcionar como agentes para a manutenção da norma patriarcal como uma forma de defesa ao que é contrário às leis e valores vigentes. Neste sentido, a terapia se identifica com o opressor e revela-se como detentora de um privilégio de dominação sobre os discursos trazidos durante as intervenções. Suas ações limitadoras podem cegar as percepções dos membros acerca do universo opressor em que vivem e a calar as dores de suas vítimas.
Assim, o desmonte da violência implica enfrentar as ameaças e os segredos, proteger as vítimas e as testemunhas e se desvincular do imaginário social que elege mitos unificadores, heróis tutelares e papéis “impermeáveis” legitimadores de ações negligentes.
A atuação sobre estas famílias deve estar articulada com as instituições sociais que possam fornecer suporte jurídico, abrigos de segurança e orientações para restituição de sua inserção na sociedade, sem a emergência dos mitos criados. O terapeuta, dentro de uma concepção ética, deve esclarecer a não disponibilidade da terapia se a intervenção fornecer indícios de que a segurança de um ou alguns membros corre risco.
Por fim, torna-se claro que o problema da violência física intrafamiliar pressupõe relações complexas no sistema que podem se aliar a outras questões como a sedução e a ameaça. É um segredo familiar que pode se configurar de diversas formas, onde a preservação das condições destrutivas e a condescendência com o agressor revelam a potencialidade à autodestruição gradual do sistema e ao fechamento ou disfunção das fronteiras intra e inter-sistêmicas. Portanto, desmantelar a violência requer enfrentar ameaças e segredos, proteger vítimas e testemunhas, e desvincular-se do imaginário social que promove mitos unificadores e papéis impermeáveis que legitimam ações negligentes. A intervenção sobre essas famílias deve ser coordenada com instituições sociais que possam fornecer suporte jurídico, abrigos seguros e orientações para reintegrá-las na sociedade sem a perpetuação dos mitos. O terapeuta, com base em uma concepção ética, pode fazer parte desse processo sistêmico que atinge não apenas o privado, mas também toda o sistema social.